quinta-feira, 26 de junho de 2008

Onze formas de auto-mutilação

Ela começou com gilete. Na palma da mão esquerda. Cortes superficiais que não sangravam, e a sensação longínqua de dor era tão branca como aqueles pedaços de pele que iam desgrudando dela.
Depois quis sentir dores mais profundas. A faca do pão. Mas descobriu que não gostava das serras: o carrasco deveria ser inteligente, irônico, afiado. Passou a usar o canivete do pai.
Em alguns dias, apaixonou-se pelo vermelho do sangue. Queria vê-lo jorrar, derramar, tingir toalhas, lençóis e a camisola velha que usava pra dormir. Dessa vez, quebrou o porco de porcelana e comprou uma navalha.
Com os pulsos enfaixados e a família desorientada, esqueceu da pele e das lâminas. Tomou Prozac.
Depois de meses de Prozac, vieram os anos e ela sentiu-se vazia. Começou a fumar.
Muitos cigarros depois, sentia sede. Whisky, vodka, gim, sempre destilados.
Mas beber dava sono. Então ela descobriu a energia do pó.
Mas pó dava depressão no day after. Internou-se e largou.
Quando saiu do hospício, compreendeu que estava adulta, solteira e morando num apartamento alugado. Foi quando fez cursinho e virou técnica administrativa de um ministério, com um namorado na mesa ao lado e o financiamento de uma apartamento de dois quartos no entorno.
Havia um cartão que deveria ser batido na máquina de modo a completar oito horas por dia, então ela sentiu que o entorno era longe. Vestiu-se de branco, engoliu as lágrimas e foi ao cartório. Assinou o livro como a menina que passava a navalha no braço, e soube que estava tudo errado.
Estando tudo errado, teve três filhos magros e infelizes, sofreu de cirrose e morreu.


3 comentários:

livia dias disse...

é... intenso e deprimente.

Manuela López disse...

a intensidade. sempre ela. como a maçã vermelha. linda. altamente desejável. aparentemente inofensiva...

Anônimo disse...

cara, tava tudo errado mesmo.
mas, pelo menos, os filhos eram magros.