sexta-feira, 15 de abril de 2011

dar e receber (ana ser)

Antes disso, porém, aconteceu um raro episódio no qual Ana estava situada em seu centro. Assim, fez mais do que viajar para a amiga rapidamente por telefone e convidou-a para alguns dias numa terceira cidade, definitivamene a que mais lhe atraía.


Assim, com a amiga sobreposta em São Paulo, Ana deixou-se ir e vir na Avenida paulista absolutamente deslumbrada com a pressa dos acontecimentos, com a frieza das pessoas interessantes e com aquele emaranhado de cimento e possibilidades.

Além da sensação mental que Ana experimentou naqueles dias, havia ainda as cenas cotidianas profundamente inspiradoras que ela podia beber como se fossem chopp.

As duas estavam abraçadas assistindo à bela performance de um guitarrista que tocava na calçada quando passou o mendigo mais mendigo de São Paulo e depositou algumas moedas no chapéu do músico, o que aliás ninguém naquela platéia dispersa fez menção de fazer, tampouco Ana.

Ela, muito comovida, refletiu sobre o mendigo subversivo, que através daquela atitude franciscana inverteu toda a ordem estabelecidade do dar e receber. Era uma constatação assustadora: que tipo de ordem poderia haver naquele mundo onde quem nada tem, dava?

retorno (ana ser)

 A neblina em volta de Ana que, se a protegia em alguma medida do olhar pouco generoso do mundo, embaçava suas relações e distorcia a imagem que projetava no espelho e na percepção do outro. Em horas internamente muito londrinas, a ninguém era possível enxergá-la, e esse era o resumo da sua alteridade.


Nos dias de meteorologia muito ruim, caso precisasse perceber a si mesma e ser claramente percebida para quem sabe escrever, ou trabalhar ou atravessar algum contato humano absolutamente inevitável, Ana ausentava-se de si em busca de terras mais quentes e ensolaradas.

Esse destino possibilitador dos seus escritos e da teia prática da vida era uma cidade acolhedora e amistosa, sempre aberta à visitação: uma amiga.

Os grandes pontos turísticos da única amiga na qual Ana verdadeiramente viajava eram a alternância do silêncio reparador com os diálogos precisamente desenrolados e, sobretudo, o excelente serviço de hotelaria, capaz de atender a muitos dos quartos nos quais Ana distribuía sua imensa bagagem e a grande comitiva de seus talentos e vontades.

É claro que não era uma travessia rápida, porque Ana era vasta e de muitas trilhas acidentadas. Se estivesse nos confins de suas terras, na montanha mais alta ou no vilarejo mais afastado, Ana precisava de uma vontade beduína para enfrentar desertos e vencer o imenso caminho, o que resultava em uma exaustão profunda e muitos dias de sono na amiga.

Se estivesse em suas fronteiras, quase se abandonando para localizar-se em lugar algum, a amiga enviava as forças de resgate e trazia Ana de volta, ou para ela própria ou para alguns dias de recuperação da sua condição mental de fugitiva de um longo cativeiro na selva. Com o conhecimento de uma velha anfitriã, a amiga sabia que quando Ana se raptasse sem um bom plano ou qualquer intenção de receber um resgate, não seria possível barganhar com ela por ela e, portanto, já não haveria salvação.

Quando, após o salto de Ana para além de qualquer borda, a amiga constatou a infelicidade de estar certa e não pode fazer mais que lamentar a clandestinidade irreversível da outra. Ela, então, mandou erguer grandes monumentos e nomeou todas suas avenidas com o nome de Ana Cristina

quinta-feira, 17 de março de 2011

para o meu tuller lacerda

A manhã está, é claro, terrivelmente quente. No entanto não controlo minha vontade de tomar café. Sento sozinha e peço um expresso duplo, penso no tempo e lembro das conversas com um amigoque não vejo há muitos meses. Meu amigo das conclusões duras e dos cafés à tarde, quando estávamos ambos tão perdidos e tão à toa que a solução só poderia ser exatamente essa: café, à tarde. Prometo a mim mesma que vou telefonar para ele e contar dos meus dias nessa rotina distante.

Volto a experimentar meu velho sentimento de inadequação, que é um mix de insegurança e ansiedade psicanaliticamente complicado de compreender, até para mim mesma. Ando com tão boa memória e tão dona dos meus horários que frequentemente surpreendo minha própria esquisitice, e calmamente acho graça.

Largar o vício de trazer a alma sempre sobressaltada traz algumas surpresas deliciosas e inesperadas. Acho que talvez seja uma compensação a esse martírio que é mudar. Desgosto do processo de mudar. Mas dessa vez me senti realmente recompensada, como se tivesse sobrevivido ao infernal trabalho de garimpar a mim mesma para terminar com algum ouro acumulado no final.

Ana Ser

“Sou um sapato apertado demais para meu próprio pé”, escreveu Ana Cristina na entrecapa de Al Vencedor, seu livro preferido de Marta Lynch.


Ana não poderia saber que ela própria, muitos anos depois, se tornaria a mulher morta da Rua Tonelero, um ícone da fé na inexistência de vencedores. Ainda que a cena da bela moça saltando com a alma descalça do parapeito de um prédio condense o mistério sedutor das tragédias, esse quadro evocaria para sempre a injusta desordem das coisas e dos cotidianos.

Entretanto, naquele momento, ela era apenas o quadro de Ana que lia e segurava um copo plástico de café frio. Distraída, Ana registrava suas próprias notas mentais mais do que atentava para as palavras de Marta, que se mostrava especialmente desiludida naquela obra, desvelando a trama da universalidade da derrota na condição humana.

Ana nunca debateu consigo se Marta explorava melhor os labirintos da perda nas suas produções literárias ou em seus modos de narrar a si mesma. Ela não concordou que poderia haver na vida pessoal de Marta o dilema essencialmente feminino do vício da beleza em oposição ao inimigo necessário: o tempo. Era, sem dúvidas, um auto retrato doloroso, ao passo em que era absolutamente sincero.