segunda-feira, 30 de junho de 2008

Tempo

O tempo. Sempre o tempo, marcando todas as coisas entre o agora e o não mais, forçando o mundo a caminhar na direção do que está por vir.
Os prazos, os dia do vencimento das contas, a validade das coisas nas geladeiras e nas prateleiras, as semanas que passam voando e aquele minuto que não passou jamais. Tanta gente presa naquele minuto. Depois dele, restou apenas a sombra de alguém para sempre parado quem sabe em uma sala, ou cama, ou cemitério, ou aeroporto, quem sabe em um toque, um beijo, um aceno, enfim, no limite de tudo o que não se pode esquecer jamais.
O tempo das lembranças e dos esquecimentos: a vida inteira em uma hora, e a hora que falta para começar a vida não em suas metades, mas a vida inteira.
Era ali que ela estava, no tempo, aos pedaços. Parada naquela sala há muitos anos atrás, com suas flores, velas e adeus. Andando sempre sozinha pela cidade cinza, com seus mapas confusos e uma bússola quebrada. Deitada no escuro do quarto, esperando o telefone tocar ou alguém bater à porta.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Onze formas de auto-mutilação

Ela começou com gilete. Na palma da mão esquerda. Cortes superficiais que não sangravam, e a sensação longínqua de dor era tão branca como aqueles pedaços de pele que iam desgrudando dela.
Depois quis sentir dores mais profundas. A faca do pão. Mas descobriu que não gostava das serras: o carrasco deveria ser inteligente, irônico, afiado. Passou a usar o canivete do pai.
Em alguns dias, apaixonou-se pelo vermelho do sangue. Queria vê-lo jorrar, derramar, tingir toalhas, lençóis e a camisola velha que usava pra dormir. Dessa vez, quebrou o porco de porcelana e comprou uma navalha.
Com os pulsos enfaixados e a família desorientada, esqueceu da pele e das lâminas. Tomou Prozac.
Depois de meses de Prozac, vieram os anos e ela sentiu-se vazia. Começou a fumar.
Muitos cigarros depois, sentia sede. Whisky, vodka, gim, sempre destilados.
Mas beber dava sono. Então ela descobriu a energia do pó.
Mas pó dava depressão no day after. Internou-se e largou.
Quando saiu do hospício, compreendeu que estava adulta, solteira e morando num apartamento alugado. Foi quando fez cursinho e virou técnica administrativa de um ministério, com um namorado na mesa ao lado e o financiamento de uma apartamento de dois quartos no entorno.
Havia um cartão que deveria ser batido na máquina de modo a completar oito horas por dia, então ela sentiu que o entorno era longe. Vestiu-se de branco, engoliu as lágrimas e foi ao cartório. Assinou o livro como a menina que passava a navalha no braço, e soube que estava tudo errado.
Estando tudo errado, teve três filhos magros e infelizes, sofreu de cirrose e morreu.


terça-feira, 24 de junho de 2008

Adeus, vida velha (trecho 3)

"Pronto, entrava na discussão o fim-de-semana, embaralhando e confundindo tudo.
Ele procurou recuperar a concentração e retomar as rédeas do seu pensamento.
O que eu pergunto é se os dias vão somando-se na nossa vida ou se eles vão se acabando... assim, a vida caminha pra trás ou pra frente??
O cara da mesa ao lado achava que ele era louco? Não, não, ele o olhava como se pensasse que ele era mesmo um pouco inteligente.
Nunca pensei sobre isso (nem o ele pensara até aquela tarde). Mas acho que são as duas coisas: o meio da semana vai se somando e o sábado e o domingo vão se acabando. O que a gente faz de obrigação se soma, e o que a gente faz de prazer se acaba.
A metáfora do copo, então, já não respondia nada, era uma imagem defasada. Porque a semana não era um líquido uniforme, era doce e amargo ao mesmo tempo, e outros mil sabores em que ele não tivera ainda tempo de pensar.
Ele estava como iluminado. O cara ao lado era um oráculo".

Adeus, vida velha (trecho 2)

"Esse trocadilho, sempre associado a otimismo ou pessimismo naquelas correntes virtuais chatíssimas, que quase sempre ele deletava antes de ler, arrematou brilhantemente suas indagações com uma outra pergunta, imensamente poderosa e carregada de milhões de significados: os dias são pequenas gotas acrescentadas ao copo ou pequenos goles findando o líquido escasso?
Um tanto espantado com a complexidade do próprio pensamento e um outro tanto cansado de digitar, carimbar, responder emails e atender telefonemas, ele sentiu vontade de dividir aquela idéia. Virou para o cara da mesa ao lado: a gente quer que a semana passe logo ou que ela nunca acabe?
O cara não desviou os olhos do micro. Ele repetiu a pergunta mais alto.
Hã?
Um telefone tocava, uma impressora imprimia, o chefe dava ordens à secretária.
Digo, a gente está quase completando mais um dia de trabalho ou perdeu um dia? Ele estava impressionado com a simplicidade do caso quando verbalizado.
O cara não pareceu surpreso. Talvez também pensasse sobre aquilo às vezes.
As duas coisas, eu acho. É mais um dia de trabalho e menos um dia para o fim de semana".

Adeus, vida velha (trecho 1)

"Mais um dia...
Ou menos um dia, responde o cara da mesa ao lado.
Ele, que não é dado a essas profundidades do pensamento, sente acender-se subitamente uma idéia: os meus dias estão somando-se ou subtraindo-se? A indagação não fazia sentido. Reformulou: cada ano é mais um ano ou menos um ano? Ainda sentia a pergunta confusa demais.
Esforçou-se, e sublimou a dúvida: estou caminhando para um ponto de chegada ou para o abismo? Sabia que abismo era sua metáfora para o nada, o fim: quando pensava em morte, imaginava buracos enormes, penhascos de imensas montanhas. No entanto, não sabia a que associar ponto de chegada, estando aquele segundo conceito inatingível demais, impreciso demais, luminoso e obscuro ao mesmo tempo. Ele precisava pensar em termos mais simples, o que tornava, portanto, desagradável refletir sobre pontos de chegada. Além do mais, esse não era o problema aqui. Assim, voltou a concentrar-se na reflexão anterior.
A palavra abismo, com todos os seus claros significados, evocou imagens: pensou em uma ampulheta (quase seis minutos para recordar aquele nome), com os grãozinhos de areia caindo, caindo e acabando. Depois lembrou-se do email clássico que pergunta se um copo pela metade está meio cheio ou meio vazio".

Cigarros

Treze cigarros. Cinco cigarros por semana e já era vício. Fumara treze. Treze. Treze. Treze cigarros na última semana. A OMC ou algo que o valha já a considerava uma fumante, alguém com dependência em nicotina, com aquele pulmão preto e os dentes amarelados.
Podia ficar com as pernas grangrenadas, podia perder os dentes que já estariam amarelos há muito tempo, podia abortar se estivesse grávida e, se não abortasse, podia ter um filho cego, surdo ou doente mental. O bebê podia nascer sem pernas, ter distúrbios neurológicos, ser asmático.
Se fosse homem, ela seria impotente. Impotente, meu Deus, dá pra imaginar a desgraça, o sofrimento, o problema de um pau mole?
Sim, é claro que pararia de fumar. Pararia de fumar, arrumaria a casa, cuidaria dos cabelos e iria à manicure toda semana. Toda sexta-feira ela faria as unhas, e faria dieta e se matricularia na academia.
Também voltaria ao inglês, começaria a pós-graduação e, por que não, arranjaria um namorado. Por que não? Já não estava na hora de investir em um relacionamento? Que sabe pensar em um namoro mais duradouro mesmo, não estava tão mal assim que não pudesse arranjar homem. Não estava, não é mesmo? Não estava, não podia estar.
Estava mesmo era cansada. Não passa nada nessa porra de TV, que saco, a TV é um merda. Vou cancelar essa assinatura.
Ai, meu, Deus, o dinheiro não vai dar nunca até o mês que vem. Droga, droga o cheque especial tá estourado, tinha que ter conferido esses extratos antes do fim de semana.
Mais um cigarro. Quatorze. Quatorze cigarros na semana. Mas seria o último... já é domingo, e já está tarde. Ela deve dormir daqui a pouco. Mas domingo não é o primeiro dia da semana? Ai, meu Deus, então pra essa semana imensa só restam quatro.