quinta-feira, 17 de março de 2011

para o meu tuller lacerda

A manhã está, é claro, terrivelmente quente. No entanto não controlo minha vontade de tomar café. Sento sozinha e peço um expresso duplo, penso no tempo e lembro das conversas com um amigoque não vejo há muitos meses. Meu amigo das conclusões duras e dos cafés à tarde, quando estávamos ambos tão perdidos e tão à toa que a solução só poderia ser exatamente essa: café, à tarde. Prometo a mim mesma que vou telefonar para ele e contar dos meus dias nessa rotina distante.

Volto a experimentar meu velho sentimento de inadequação, que é um mix de insegurança e ansiedade psicanaliticamente complicado de compreender, até para mim mesma. Ando com tão boa memória e tão dona dos meus horários que frequentemente surpreendo minha própria esquisitice, e calmamente acho graça.

Largar o vício de trazer a alma sempre sobressaltada traz algumas surpresas deliciosas e inesperadas. Acho que talvez seja uma compensação a esse martírio que é mudar. Desgosto do processo de mudar. Mas dessa vez me senti realmente recompensada, como se tivesse sobrevivido ao infernal trabalho de garimpar a mim mesma para terminar com algum ouro acumulado no final.

Ana Ser

“Sou um sapato apertado demais para meu próprio pé”, escreveu Ana Cristina na entrecapa de Al Vencedor, seu livro preferido de Marta Lynch.


Ana não poderia saber que ela própria, muitos anos depois, se tornaria a mulher morta da Rua Tonelero, um ícone da fé na inexistência de vencedores. Ainda que a cena da bela moça saltando com a alma descalça do parapeito de um prédio condense o mistério sedutor das tragédias, esse quadro evocaria para sempre a injusta desordem das coisas e dos cotidianos.

Entretanto, naquele momento, ela era apenas o quadro de Ana que lia e segurava um copo plástico de café frio. Distraída, Ana registrava suas próprias notas mentais mais do que atentava para as palavras de Marta, que se mostrava especialmente desiludida naquela obra, desvelando a trama da universalidade da derrota na condição humana.

Ana nunca debateu consigo se Marta explorava melhor os labirintos da perda nas suas produções literárias ou em seus modos de narrar a si mesma. Ela não concordou que poderia haver na vida pessoal de Marta o dilema essencialmente feminino do vício da beleza em oposição ao inimigo necessário: o tempo. Era, sem dúvidas, um auto retrato doloroso, ao passo em que era absolutamente sincero.