quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

"Na sua simplicidade, Clara parecia precisa e útil, capaz de suscitar questões lógicas e decisões diretas, o que causava um misto de despeito e fascínio nos labirintos sombrios da minha mente".
grudava na minha ansiedade e tudo que eu precisava era me sentir em movimento, a noite me lembrava um grande trem com poltronas reclináveis, onde eu me sentia segura, confortável e, sobretudo, fora de alcance. Não sei bem porque essa é uma das minhas recordações mais acolhedoras, se só viajei de trem uma única vez, quando era criança.


Era na noite estilo albergue onde eu costumava te encontrar, e onde Clara surgiu com sua presença simples complicando tudo em volta dela. Não digo que Clara apareceu como um sol ou um clarão na noite, e deixo de dizer não somente para fugir desse lugar comum. De fato, Clara trouxe uma luz nova para o albergue e ainda mais para a mansão, organizando os meus pensamentos em torno dela própria e iluminando tudo com aquelas faíscas de surpresa, inveja e, por que não dizer, de ódio que me queimavam sempre que eu a via, e depois até quando eu apenas pensava nela. Mas era como se Clara fosse uma lanterna com foco direcionado, e não como o sol que derrama dia em tudo.
"Na verdade, a noite sempre foi para mim uma casa muito pouco confortável. Se estivesse por bares ou clubes, onde normalmente estava ora te seguindo, ora te procurando, a noite me lembrava um albergue lotado e mal freqüentado, cheirando a cigarro e bebida derramada, que, por alguma razão física ou química que me escapa agora, cheira muito pior que bebida nos copos. Sempre tive horror a fumaça, e fiquei contente ao perceber que Clara também não a apreciava. No meu pânico de asmática crônica, cheguei a ter medo de precisar vir a fumar com ela.


Se eu estivesse em casa, o que significava necessariamente estar sozinha em casa, a noite tomava ares de mansão mal assombrada, com toda a sonoplastia de ruídos característica e alguns fantasmas escondidos nos armários, outros caminhando pela sala. O grande espelho que mandei colocar na parede para ampliar o espaço do pequeno apartamento, conforme orientam aquelas revistas de decoração, parecia uma espécie de porta transcendental por onde costumavam entrar sempre visitas sobrenaturais indesejadas. Num momento de extrema irritação, quebrei o espelho e passei alguns dias dormindo um pouco melhor. Isso foi antes, é claro, de passar a ouvir a campainha tocar a madrugada inteira, mas barulho nunca me incomodou, e me acostumei rápido".

ainda techo..

"Comecei a pesquisar obstinadamente a arquitetura de Clara. Passei a observá-la tentando descobrir suas fórmulas, a combinação que a tornava aquela Clara, e não uma Clara qualquer. Queria dissecar seus gestos, olhares, gostos, o bom gosto e o mau gosto, enfim, tudo o que me pudesse ajudar a decifrar a receita que te fascinava, um conhecimento que eu obviamente não tinha.


A princípio, não notei nada de peculiar nos modos de ser ou de estar de Clara, que demonstrava sempre uma simplicidade irritante. Para mim, em particular, chegava a ser desesperadora. Tudo nela parecia absolutamente normal, e nada sugeria qualquer segredo. No entanto, aquela mediocridade que de início tanto me exasperava e frustrava as expectativas de encontrar o mapa que estava buscando tornou-se meu ponto de partida, meu marco zero, o meridiano que repartia Clara de modo que eu pudesse me orientar enquanto estava caminhando por ela. Clara era imensa, e eu precisei dividi-la em fusos para compreender seus rumos e horários. Agora que podia saber quando e onde em Clara seria noite ou dia, fiquei um pouco aliviada de minhas muitas semanas de insônia: caso houvesse sol em um lugar, eu poderia dormir no outro lado".